O ‘Rei da Vela’ é 'uma implacável e impiedosa revisão de valores morais e culturais', declara Zé Celso. (Imagem: Reprodução/YouTube) |
🎬 Por Clóvis Assis
A t o r e s & M í d i a s
Esta fala de Hierofante, de "A Morta", de Oswald de Andrade, vinha estampada na abertura do programa da peça O Rei da Vela, que estreou em 1967 no Teatro Oficina, e descreve bem as intenções do diretor Zé Celso Martinez Corrêa.
A ideia era romper com a ordem, tanto do teatro quanto da sociedade, silenciada pela ditadura militar. A peça sofreu censura da ditadura militar em 1968, pelas alegorias políticas e críticas ao capitalismo, dos anos 1960.
Décadas depois este clássico da artes cênicas brasileira volta aos palcos, e tão atual quanto a 50 anos atrás. Desde 2017, o texto vem sendo remontado por Zé Celso.
A turnê da atual montagem fez uma breve passagem por Rio Preto (SP), no último sábado (26), com duas apresentações no Teatro Municipal Humberto Sinibaldi Neto, realizadas pelo Sesc SP.
(Foto: Reprodução/Youtube) |
NUMA análise de meio século atrás, a peça se mostra contemporânea nas críticas políticas e econômicas, trazendo um lembrete desconfortável de que questões de 1930 ainda permanecem.
Conforme Zé Celso, "a peça tem o poder de acender a vela da percepção no labirinto dos nossos cérebros, intestinos, sexos, corpos e despertar o apetite de devoração deste estado de espera imposto pelas crises”.
A remontagem serve para comemorar também os 80 anos de Zé Celso e Renato Borghi —protagonista em 1967— , que nesta atual versão contracenam com o cenógrafo Hélio Eichbauer —o criador do cenário com palco giratório e painéis artísticos idênticos aos usados cinco décadas atrás.
O REI DA VELA
ESCRITO por Oswald de Andrade em 1933 e publicado em 1937, o texto foi adaptado para o teatro e, posteriormente, para o cinema. A primeira encenação coincide com a explosão da Tropicália e do movimento de descolonização do Brasil na Primavera Cultural de 1967, em plena ditadura militar.
De acordo com o diretor José Celso Martinez Correa o espetáculo foi uma desenfreada descoberta crítica do Brasil —mas que se encaixa perfeitamente no que estamos vivendo em pleno ano de 2018, transformando-se, assim, numa bandeira radical, num manifesto político cultural, explosivo e criativo.
“A peça foi uma forma de realizar uma radiografia do país, revelando sua podridão, seu tecido interno canceroso e assim mesmo resistente porque se renovava em nossa passividade e em nosso ingênuo conformismo”.
ZÉ CELSO tinha a certeza de que propunha algo inovador, insolente, que repercutiria de forma demolidora. A crítica da época se confessava perplexa, a intelectualidade, instigada, artistas, inspirados, e o público, confuso, mas mantendo a montagem por mais de uma década.
O espetáculo desencadeou um confronto direto com a classe média da época, que assistia a peças teatrais e, de certa forma, sustentava a ditadura. A ideia era propor uma nova estética do teatro, interagindo com o público, afrontando os valores morais e até usando palavras de baixo calão.
(Foto: Reprodução/Youtube) |
CONTUDO é desafiante para a plateia, sôfrega e impaciente, penetrar em texto, longo e discursivo, e não se envolver por sucessão de atos —politicamente (in)corretos [?]— ao assistir ali, imóvel, ao próprio suplício, o qual se encontra submerso nesse exato ano 2018, de mesmas crises políticas.
Talvez agora, 50 anos depois, O Rei da Vela se confirme como valor “definitivo”. E pareça um tanto menos barulhenta ao apelar no final que o público, "esse imenso cadáver gangrenado", não apenas aplauda o que acabou de ver, mas que talvez sugira "chamar bombeiros e polícia para salvar tradições e moral", conforme a fala de Hierofante.
E como lembrou Zé Celso, a peça é uma implacável e impiedosa revisão de valores morais e culturais. "(...) agredindo a nós mesmos, numa etapa de um vertiginoso processo de libertação de preconceitos e formação cultural colonizada", conclui o diretor.