domingo, 27 de maio de 2018

TEATRO | 'O Rei da Vela', que riu da sociedade dos anos 60, traz críticas políticas e sociais tão atuais quanto há 50 anos

Escrita em 1933 por Oswald de Andrade, a peça estreou em 1967 pelo Teatro Oficina de Zé Celso Martinez Corrêa, num tempo de repressão e censura. Encenada neste sábado (26) em Rio Preto (SP), o texto continua atual e se encaixa perfeitamente no Brasil de hoje, como um manifesto político-cultural, explosivo e criativo.

O ‘Rei da Vela’ é 'uma implacável e impiedosa revisão de valores morais e culturais', declara Zé Celso. (Imagem: Reprodução/YouTube)
🎬 Por Clóvis Assis        
A t o r e s  &  M í d i a s

"RESPEITÁVEL público! Não vos pedimos palmas, pedimos bombeiros! Se quiserdes salvar vossas tradições e vossa moral, ide chamar os bombeiros ou se preferirdes a polícia!".  

Esta fala de Hierofante, de "A Morta", de Oswald de Andrade, vinha estampada na abertura do programa da peça O Rei da Vela, que estreou em 1967 no Teatro Oficina, e descreve bem as intenções do diretor Zé Celso Martinez Corrêa. 

A ideia era romper com a ordem, tanto do teatro quanto da sociedade, silenciada pela ditadura militar. A peça sofreu censura da ditadura militar em 1968, pelas alegorias políticas e críticas ao capitalismo, dos anos 1960. 

Décadas depois este clássico da artes cênicas brasileira volta aos palcos, e tão atual quanto a 50 anos atrás. Desde 2017, o texto vem sendo remontado por Zé Celso

A turnê da atual montagem fez uma breve passagem por Rio Preto (SP), no último sábado (26), com duas apresentações no Teatro Municipal Humberto Sinibaldi Neto, realizadas pelo Sesc SP. 
(Foto: Reprodução/Youtube)
NUMA análise de meio século atrás, a peça se mostra contemporânea nas críticas políticas e econômicas, trazendo um lembrete desconfortável de que questões de 1930 ainda permanecem. 

Conforme Zé Celso, "a peça tem o poder de acender a vela da percepção no labirinto dos nossos cérebros, intestinos, sexos, corpos e despertar o apetite de devoração deste estado de espera imposto pelas crises”.

A remontagem serve para comemorar também os 80 anos de Zé Celso e Renato Borghi —protagonista em 1967— , que nesta atual versão contracenam com o cenógrafo Hélio Eichbauer —o criador do cenário com palco giratório e painéis artísticos idênticos aos usados cinco décadas atrás.



O REI DA VELA 

ESCRITO por Oswald de Andrade em 1933 e publicado em 1937, o texto foi adaptado para o teatro e, posteriormente, para o cinema. A primeira encenação coincide com a explosão da Tropicália e do movimento de descolonização do Brasil na Primavera Cultural de 1967, em plena ditadura militar.

De acordo com o diretor José Celso Martinez Correa o espetáculo foi uma desenfreada descoberta crítica do Brasil —mas que se encaixa perfeitamente no que estamos vivendo em pleno ano de 2018, transformando-se, assim, numa bandeira radical, num manifesto político cultural, explosivo e criativo.

“A peça foi uma forma de realizar uma radiografia do país, revelando sua podridão, seu tecido interno canceroso e assim mesmo resistente porque se renovava em nossa passividade e em nosso ingênuo conformismo”.



ZÉ CELSO tinha a certeza de que propunha algo inovador, insolente, que repercutiria de forma demolidora. A crítica da época se confessava perplexa, a intelectualidade, instigada, artistas, inspirados, e o público, confuso, mas mantendo a montagem por mais de uma década.

O espetáculo desencadeou um confronto direto com a classe média da época, que assistia a peças teatrais e, de certa forma, sustentava a ditadura. A ideia era propor uma nova estética do teatro, interagindo com o público, afrontando os valores morais e até usando palavras de baixo calão.
(Foto: Reprodução/Youtube)




CONTUDO é desafiante para a plateia, sôfrega e impaciente, penetrar em texto, longo e discursivo, e não se envolver por sucessão de atos —politicamente (in)corretos [?]— ao assistir ali, imóvel, ao próprio suplício, o qual se encontra submerso nesse exato ano 2018, de mesmas crises políticas.

Talvez agora, 50 anos depois, O Rei da Vela se confirme como valor “definitivo”. E pareça um tanto menos barulhenta ao apelar no final que o público, "esse imenso cadáver gangrenado", não apenas aplauda o que acabou de ver, mas que talvez sugira "chamar bombeiros e polícia para salvar tradições e moral", conforme a fala de Hierofante.

E como lembrou Zé Celso, a peça é uma implacável e impiedosa revisão de valores morais e culturais. "(...) agredindo a nós mesmos, numa etapa de um vertiginoso processo de libertação de preconceitos e formação cultural colonizada", conclui o diretor.